Notícia

COP27 sinaliza importância da justiça climática para o mercado, diz Ricardo Young

Publicado em: 02/12/2022

A Conferência do Clima realizada em Sharm el-Sheikh, no Egito, a COP27, sinalizou para o mercado a crescente importância da justiça climática e do seu conceito, avalia Ricardo Young, presidente do conselho diretor do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), ex-presidente do Instituto Ethos e membro do Conselho da Synergia Socioambiental.

“Se os países emissores passam a ser responsáveis pelas perdas e danos dos países mais vulneráveis, o que dizer da responsabilidade das empresas em relação aos seus impactos na sociedade?”, indaga Young ao comentar os resultados da COP27 nesta entrevista ao site da Synergia.

Uma das personalidades mais influentes na agenda da sustentabilidade do mundo corporativo no Brasil, Ricardo Young se mostra preocupado com a imensa dificuldade de se alcançar consenso global que comprometa o mundo com ações que barrem um acréscimo na temperatura média do planeta acima de 1,5ºC antes os níveis pré-industriais. Mas não considera os obstáculos políticos justificativa plausível para o setor privado ficar omisso no assunto.

“Não precisamos, enquanto empresas, esperar o desenlace político para validar o que é científico. As tendências estão postas. Se as empresas não as incorporarem em suas estratégias, pagarão um preço muito mais alto no futuro com o risco, inclusive, de se inviabilizarem.”

*****

A aprovação pela COP27 do fundo de perdas e danos foi comemorada no mundo inteiro como uma vitória significativa dos países em desenvolvimento, sobretudo as nações mais vulneráveis às mudanças climáticas. Apesar de ainda carecer de definições importantes, como as fontes e os volumes dos recursos, os critérios para acessá-los e a governança do mecanismo, sua adoção sinaliza a importância que os temas associados à justiça climática ganharam na COP27. Que mensagem a aprovação do mecanismo de perdas e danos envia para a comunidade empresarial?

Este talvez tenha sido um dos principais avanços da COP27. O conceito de perdas e danos é uma conquista que se arrasta há décadas e se tornou inevitável face às crescentes perdas dos países em desenvolvimento com os eventos climáticos extremos. As enchentes do Paquistão, o agravamento da situação insular de alguns países e repetidas tragédias deixam a nu que a conta da crise climática é alta e tem que ser paga pelos países de maior emissão.

Para o mercado, a COP sinaliza a crescente importância do conceito de justiça climática. Se os países emissores passam a ser responsáveis pelas perdas e danos dos países mais vulneráveis, o que dizer da responsabilidade das empresas em relação aos seus impactos na sociedade? A justiça climática veio para ficar, e há segmentos de mercado que apostam mais na eficácia da justiça climática do que em estratégias ESG [aspectos ambientais, sociais e de governança] voluntárias, pois ela aumenta a responsabilidade fiduciária dos conselhos e passará a integrar o compliance das organizações [conjunto de procedimentos com a finalidade de prevenir, detectar, mitigar e punir irregularidades, fraudes e corrupção numa empresa].

A agenda da justiça climática deverá atrair ou afugentar investimentos em economia verde no mundo em desenvolvimento?

Creio que atrair. Os custos crescentes da crise climática aceleram soluções de mitigação e a viabilidade econômica de SBN (soluções baseadas na natureza). Há um novo mercado de oportunidades surgindo com a demanda exponencial da regeneração de serviços ambientais. O mercado de carbono é apenas a ponta do iceberg das oportunidades que virão. As questões hídricas e da biodiversidade vêm ganhando espaço, e em breve teremos a regulação e o pagamento por estes serviços também. De forma simples, a licença para se produzir destruindo o meio ambiente está com os dias contados, as restrições no campo legal aumentam. Portanto, além das oportunidades, haverá severos custos para externalidades climáticas e sociais.

A importância que a cúpula climática de Sharm el-Sheikh conferiu ao tema de perdas e danos parece ter ofuscado a palidez dos compromissos incluídos na declaração final na área da mitigação das emissões. Ficou a sensação de que a cúpula climática preferiu tratar mais os sintomas do que as causas do aquecimento global.

Temos que considerar, sem atenuar, que o ano de 2022 foi marcado pela pós-pandemia, inflação global, o impacto da guerra da Ucrânia com a consequente escassez de alimentos e de energia. Foi a oportunidade para que o lobby do petróleo e gás conseguisse impedir a ampliação para todos os combustíveis fósseis da conquista obtida no Pacto Climático de Glasgow, adotado na COP26, que prevê a redução gradual do uso do carvão mineral para a geração de energia. O melhor exemplo disso foi a inclusão no relatório final da COP27 do conceito de fontes energéticas de “baixa emissão “, o que é no mínimo um oximoro.

importância da justiça climática. Céu poluído por indústrias. Foto: Adobe Stock
Importância da justiça climática: falta de progresso no compromisso com a eliminação de combustíveis fósseis marcou a COP27. Foto: Adobe Stock

A boa intenção de estabelecer novas premissas e prazos através do novo Programa de Trabalho de Mitigação (MWP) até aqui é mais simbólico do que efetivo, uma vez que houve severas resistências (inclusive do Brasil) pelo risco de se alterar os NDCs [sigla em inglês para Contribuições Nacionalmente Determinadas] e com isso comprometer as conquistas da COP de Paris. Foram estabelecidos novos encontros e workshops para se tentar avançar neste tema.

Um dos principais objetivos do encontro era o de progredir nos compromissos de mitigação ante os resultados da COP26, realizada um ano atrás em Glasgow, de maneira a assegurar que o mundo pudesse trilhar uma rota mais segura para impedir um aumento da temperatura média do planeta além de 1,5ºC até o final deste século em relação aos níveis pré-industriais. Nenhum compromisso foi assumido na COP27 nesse sentido, tornando cada vez mais difícil manter a meta de 1,5ºC, sob a qual já era dado como certo pelos cientistas o desaparecimento de 70% a 90% dos recifes de corais. Do lado das empresas, seria desejável que suas metas climáticas continuassem ajustadas para um cenário de 1,5ºC?

Sim, pois as dificuldades extremas de conseguir consenso internacional nestes temas não mudam o que o IPCC [sigla em inglês para o Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima] já demonstrou cientificamente: se não houver a estabilização da temperatura em torno de um acréscimo máximo de 1,5 grau Celsius, a vida no planeta está ameaçada de extinção. Não precisamos, enquanto empresas, esperar o desenlace político para validar o que é científico. As tendências estão postas. Se as empresas não as incorporarem em suas estratégias, pagarão um preço muito mais alto no futuro com o risco, inclusive, de se inviabilizarem.

Como as metas de zerar as emissões líquidas (net zero) até 2050, que proliferaram nos últimos dois a três anos na comunidade de negócios, podem contribuir para barrar o incremento da temperatura acima do 1,5ºC? O que é necessário fazer para que o net zero seja mais do que greenwashing?

Paul Polman, o legendário ex-CEO da Unilever, escreveu em seu livro Net Positive [lançado no Brasil em agosto pela editora Sextante com o título Impacto positivo] que já não basta buscar o Net Zero, é necessário ir além, pois zerar as emissões já não basta. É necessário revertê-las, através do sequestro maciço de GEE [gases de efeito estufa] em soluções SBN como reflorestamento em larga escala e tecnologias que retirem o CO2 da atmosfera. Estamos, insisto, em uma revolução na economia com a importância histórica que a revolução industrial e a revolução tecnológica tiveram. A economia da regeneração e de baixo carbono mudará completamente a forma como produzimos, consumimos e vivemos. Não são mudanças pontuais e acessórias como o pessoal do greenwashing gostaria. Não é de marketing, é da vida que estamos falando. Uma outra ética se impõe.

Nenhuma menção sobre a COP15, a conferência sobre biodiversidade, foi incluída na decisão de capa adotada pela cúpula de Sharm el-Sheikh (o encontro ocorrerá de 7 a 19 deste mês em Montreal, no Canadá). A lacuna foi vista com preocupação por cientistas e ambientalistas, visto que há forte conexão entre mudanças climáticas e a extinção em massa de espécies atualmente em curso. Os acenos favoráveis às agendas climáticas e da biodiversidade pelo presidente eleito Lula sugerem uma retomada de liderança do Brasil nessas duas pautas?

Estou bem esperançoso. Desta vez, não é apenas uma promessa de campanha, temos os melhores especialistas em mudanças climáticas no governo de transição. É muito provável que seja instituída a Autoridade Climática, que irá atuar transversalmente em todos os ministérios para assegurar articulação e integração das políticas públicas para que as NDCs sejam atingidas. A expectativa é que possamos caminhar a passos largos para o fim do desmatamento ilegal e com políticas de incentivo para reflorestamento e regeneração além dos Pagamentos por Serviços Ambientais. Inclusive, a nova reforma fiscal a ser proposta pelo novo governo deve trazer estímulos fiscais concretos para a aceleração da agenda do clima.

importância da justiça climática. Urso polar em gelo derretido. Foto: Adobe Stock
Importância da justiça climática: conexão entre mudanças climáticas e a extinção em massa de espécies é preocupação do Brasil e do mundo. Foto: Adobe Stock

Houve frustração com a falta de progresso no compromisso com a eliminação de todos os combustíveis fósseis, como chegou a defender a Índia, embora de maneira gradual. Nada foi acrescido nessa pauta em relação ao compromisso de eliminação gradual do uso do carvão, aprovado na COP26. É um sinal ruim para a parcela das empresas que está investindo na energia renovável?

Entendo que esta medida foi circunstancial em função dos motivos que citei acima. Os dispositivos de desestímulo e de metas de redução dos combustíveis fósseis deverão voltar em breve em função de dois fatores: o primeiro, a aceleração de substituição das energias fósseis imposta à Europa pela guerra da Ucrânia que se viu, da noite para o dia, em uma dependência perigosa do petróleo e do gás russo. Em um primeiro momento, esta demanda sobe pela escassez, mas, em um segundo, a intensificação das pesquisas e investimentos em energias renováveis fará com que a Europa antecipe o seu calendário neste quesito absolutamente estratégico.

O segundo fator refere-se à exponencialização das energias renováveis. Em breve, a energia solar, elétrica e derivada de hidrogênio líquido moverá o transporte mundial. Durante o auge da Covid, vimos os preços do petróleo caindo e os estoques mundiais de petróleo se acumulando ao ponto de ter que reduzir a produção a um mínimo. O que ocorrerá com a energia de fontes fósseis quando o mundo inteiro estiver se utilizando destas novas tecnologias e a demanda de transporte e aquecimento mudar o seu perfil? Já vimos o trailer.

Enquanto a decisão da COP 27 foi oportunista e circunstancial, a eliminação dos combustíveis fósseis é estratégica, um imperativo de longo prazo.

O compromisso de dobrar o valor do financiamento à adaptação dos países mais vulneráveis à crise climática, aprovado em Glasgow, foi apenas reafirmado, sem progresso no tema. Apenas 20% dos US$ 100 bilhões anuais a partir de 2020 seriam canalizados para ações de adaptação. O valor é uma promessa feita pelos países ricos na COP15, realizada em Copenhague em 2009, mas até hoje não totalmente cumprida. Além do mais, a maior parte do dinheiro remetido a países em desenvolvimento foi composto por empréstimos, que precisam ser devolvidos com juros aos credores. Os países pobres demandam financiamento a fundo perdido, não reembolsável.

Sim, demandam. Na década de 1990, estava muito em moda uma proposta formulada pelo americano James Tobin, Nobel de Economia, que incidiria sobre as transações financeiras mundiais em um percentual quase insignificante, mas que em seu agregado representariam recursos vultosos para o combate à pobreza e ao desencorajamento da especulação financeira mundial. A proposta não vingou, mas deixou como legado a criação da entidade francesa ATTAC (Associação pela Tributação das Transações Financeiras para a ajuda aos Cidadãos), que mantém a causa acesa.

Cito este exemplo para dizer que ajudas internacionais para além da APD (Ajuda Pública ao Desenvolvimento), que hoje mobiliza recursos para além de 150 bilhões de dólares, precisarão de uma nova arquitetura. É razoável pensar que os fundos climáticos poderiam e deveriam ser financiados não só por nações, mas também pelos consumidores mais afluentes que, em tese, têm uma pegada ecológica maior. A insistência de criar fundos como o acordado na COP15, em Copenhague, ou agora, na COP 27, colide com os mecanismos soberanos e nacionais. Estes fundos têm muita dificuldade de serem implementados pois implicam processos internos, legais e até plebiscitários nos países desenvolvidos, e suas posições não são lineares neste aspecto. Se fosse uma questão óbvia de vontade política unilateral, o fundo de 100 bilhões de dólares já seria uma realidade.

Penso que falta criatividade ou vontade política coletiva real para que os fundos climáticos em uma nova arquitetura possam ser pensados. Outra forma de se conceber os fundos seria por acordos bilaterais, como o Fundo Amazônia, mas sempre serão pontuais e vulneráveis a casuísmos ou estimulados por interesses geopolíticos de difícil legitimação quando a questão é de sustentabilidade.

Geralmente, a comunidade de negócios costuma focar muito mais a mitigação do que a adaptação. Falta de fato um envolvimento mais robusto das empresas com as ações de adaptação ou elas são por natureza uma pauta muito mais ligada ao setor público?

O esforço de mitigação é necessário e, como citei acima, se acelera com a litigância climática. Mas temos que compreender que o modelo capitalista que nos levou à crise climática e à desigualdade social extrema não mais se sustenta. Quando o fundador e presidente do Fórum Econômico de Davos, Klaus Schwab, declarou em 2020 o fim do capitalismo de acionistas (shareholders) e a necessidade de um capitalismo que gere valor para todas as partes interessadas, um capitalismo de partes interessadas (stakeholders), talvez não tenha sido compreendido.

importância da justiça climática. Usinas eólicas. Foto: Adobe Stock
Importância da justiça climática: investimentos em energias renováveis são essenciais para controle das mudanças do clima. Foto: Adobe Stock

No ano seguinte, o mote passou a ser “O Grande Recomeço” (The Great Reset), conclamando as empresas a se reinventarem e a assumirem parcelas crescentes de responsabilidade socioambiental. A emergência do conceito ESG está ligada a estas mudanças no establishment do mundo financeiro global. Davos e Blackrock [maior gestora de ativos no mundo] foram apenas duas das vertentes de mudança, hoje elas se multiplicaram e convidam o mundo empresarial a uma nova mentalidade, muito mais comprometida com o todo. Afinal, o sucesso das empresas depende da saúde e bem-estar da sociedade planetária.

Pouco se falou sobre as discussões na COP27 em torno do artigo 6 do Acordo de Paris, que estabelece regras gerais para o comércio de carbono entre países e empresas. Houve decisões relevantes para o futuro mercado global de carbono e que também podem influenciar o formato desse mercado no Brasil?

O mercado financeiro tradicionalmente se antecipa às tendências. Neste caso, não será diferente. O artigo 6 já obteve avanços significativos em Glasgow, que, embora insuficientes, permitiram avanços menores na COP 27 onde vários mecanismos de regulação indicados estão servindo de base para a regulamentação interna em diversos países. No Brasil, o Banco Central já iniciou esta regulamentação, de forma incipiente ainda, mas com um senso de urgência claro. O próximo passo será a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) regular alguns novos mecanismos de investimento e tipificação de ativos característicos da economia do clima.

Os green bonds, CPR Verdes (Cédulas de Produto Rural) e a regulamentação dos créditos de carbono estão avançando. Segmentos importantes do mercado financeiro estão impulsionando esta regulamentação em função de bilhões de dólares em investimentos represados. Não é à toa que bancos como o Santander e Itaú se unem à Vale, Marfrig e Votorantim no lançamento da Biomas, que, junto com a Re-Green e outras, está liderando os investimentos na área [de restauração de florestas].

Não ficaria surpreso se nos próximos anos os investimentos verdes vierem a se tornar importantes fontes de divisas para o Brasil.

 

Entrevista realizada por José Alberto Gonçalves Pereira, Consultor para mudanças climáticas na Synergia.


Confira também:

Salvaguardas para uma transição climática justa e O dilema ético da justiça climática – Artigos produzidos por Maria Albuquerque, fundadora e CEO da Synergia Socioambiental, e José Alberto Gonçalves Pereira.

O que esperar da COP26? Entenda o cenário da mais importante conferência sobre o clima do planeta – Artigo produzido por Ricardo Young para o site da Synergia

 

10 – Redução das desigualdades
12 – Consumo e produção sustentáveis
13 – Ação contra a mudança global do clima

Fique por dentro

Conheça mais sobre a Synergia

Cadastre-se e receba nossas novidades.

    A Synergia se preocupa com o uso de seus dados pessoais e estes serão mantidos em segurança e sigilo, de acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Para mais informações, consulte nosso aviso de privacidade.