Publicado em: 19/06/2023
Alcançar a autossuficiência hídrica, mantendo o equilíbrio entre os avanços tecnológicos e as interações com o meio ambiente, é o ponto almejado por todas as pessoas que entendem que podemos atingir resultados positivos sem colaborar com a degradação da natureza. Neste artigo, tratamos de produção de água sob o ponto de vista do abastecimento público, apresentando alternativas para os municípios enfrentarem a crise hídrica que já se instalou e oferecer água de qualidade em quantidades suficientes para as atividades humanas desenvolvidas em seu território[1].
Trata-se de uma nova abordagem, a qual resulta da mudança de postura em relação à hidrologia e é baseada em processos naturais, que privilegia o uso das estruturas verdes e a recuperação de suas propriedades naturais de produção de água[i] para chegar ao objetivo de se obter autossuficiência hídrica.
Ainda predominam no Brasil as obras de engenharia para a captação de água, a chamada “infraestrutura cinza”, a qual exige investimentos altíssimos e causa intervenções de grande impacto ambiental. Crises hídricas recorrentes demonstram que esse modelo se esgotou e, pior ainda, está comprometendo a capacidade da natureza de se reequilibrar. Muitos municípios ficam à mercê do regime de chuvas, limitados pelo consumo de água dos municípios vizinhos a montante e obrigados a deixar escoar água para os municípios a vazante.
A nova abordagem foca na preservação de mananciais, produção de água no próprio território – ou no território próximo ao consumo – e no uso intenso de infraestruturas verdes, criadas pela natureza, de menor porte, sustentáveis.
Vamos, primeiro, relembrar de onde surgem as obrigações e as responsabilidades pelo fornecimento de água para uso humano, que é primordialmente um dever estatal, seja ele concedido ou não.
A Constituição Federal e a Lei do Saneamento (Lei 11.445/2007, posteriormente alterada pela Lei e 14.026/2020) estabeleceram a competência e a responsabilidade dos entes públicos pela prestação dos serviços públicos de saneamento básico. O Art. 3, inciso I, da Lei de Saneamento delimitou o escopo desses serviços para compreender:
Abastecimento de água potável, conforme ali disposto, é “constituído pelas atividades e pela disponibilização e manutenção de infraestruturas e instalações operacionais necessárias ao abastecimento público de água potável, desde a captação até as ligações prediais e seus instrumentos de medição”[ii] e compreende as fases de captação, adução (transporte), tratamento, reservação (água já tratada armazenada em reservatórios) e distribuição.
O fato é que a governança da água é complexa e envolve as três esferas de governo, União, Estados e Municípios. Quando os serviços forem de interesse local e titularidade é do município[iii], o qual é responsável pela política pública de saneamento básico em seu território[iv]. Nesse emaranhado normativo, a fase de captação é a que contém menor número de dispositivos, conceitos e definições.
Um desses conceitos é o de “água bruta”, que é a água captada em mananciais[v] – superficiais ou subterrâneos – e que ainda precisa de tratamento para tornar-se própria para consumo humano[vi]. Para se atingir a autossuficiência hídrica, o ideal é que se tenha água bruta farta e de boa qualidade, num fluxo constante e suficiente para que seja tratada e disponibilizada para consumo humano e uso em suas atividades sociais, econômicas ou não.
Entretanto, os múltiplos interesses relacionados à água deixam os municípios à mercê do consumo à jusante (quantidade e descarte) e sob vigília do consumo à vazante (quantidade e descarte). Cada vez mais se vê disputas e conflitos pela água entre os entes públicos. A dependência de água vinda de além dos seus limites não retira dos municípios a responsabilidade pelo serviço de fornecimento de água aos núcleos urbanos de seu território e para as atividades econômicas ali desenvolvidas.
O Atlas Água[vii], publicado em 2010 pela Agência Nacional da Água (ANA), informa que 47% dos municípios brasileiros utilizam apenas águas de mananciais superficiais, corpos d’água que fazem contato com a atmosfera – como rios, córregos, lagos, represas, barragens, entre outros. Além disso, 39% dos municípios se abastecem de água subterrânea, seja de aquíferos confinados (artesianos) ou não (freáticos), e 14% se abastecem de ambos os mananciais.
As águas superficiais estão sujeitas a maior variação de estoque conforme o clima, e suas perdas por evaporação e consumo são constantemente renovadas pelas chuvas. Já os estoques de águas confinadas não são influenciados pelo clima tão diretamente, e seus mecanismos de carga e recarga são muito mais lentos. Esses estoques se comunicam, isto é, a água pode fluir do aquífero confinado para o curso d’água no período seco e, no sentido inverso, pode receber água desse mesmo rio na época de chuvas. Esse movimento é essencial para a manutenção dos fluxos dos rios, lagos e brejos e para a umidade do solo.
Vários fatores influem nesse deslocamento de água, cuja velocidade é muito variável, dependente de fatores como a porosidade do solo, seu uso, a inclinação do terreno e o tipo de chuva, para citar os mais expressivos. Grosso modo, solo pouco permeável, sem vegetação e inclinado reterá menos água, ainda mais se a chuva for intensa.
O uso indevido e não planejado do solo pode agravar muito o efeito da força da gravidade sobre a água superficial, acelerando-a a ponto de dar origem a enchentes, causar erosão e assoreamento de cursos d’água. Essa, aliás, é a fórmula das tragédias urbanas que, infelizmente, vemos repetidamente.
Por outro lado, chuvas constantes de menor intensidade, em solos permeáveis de terrenos pouco acidentados e com vegetação (especialmente a vegetação própria daquele bioma), farão a água infiltrar e percolar[viii] com maior rapidez. Uma parte dessa água ficará retida próxima à superfície, na chamada zona não saturada, onde há espaço para que a água se movimente. É onde ficam as raízes das plantas e onde ocorre sua filtração e depuração natural.
Uma segunda parte dessa água seguirá na descendente, passando pelos poros e as fraturas do subsolo até atingir a zona saturada, onde não há mais espaço entre as rochas, que já estão saturadas e não mais permitem que essa água penetre para além dessa profundidade. É aí que se encontra o nível freático, onde a zona não saturada e a zona saturada se encontram e se forma o manancial subterrâneo. É a partir dessa água que as fontes e os olhos d’água se formam.
Cada vez mais, os mananciais estão sofrendo os efeitos das mudanças climáticas e colocando em risco as necessidades humanas de abastecimento. Eventos extremos advindos dessas mudanças, como chuvas com altíssimos volumes de água em períodos relativamente curtos, secas repetidas e de maior extensão foram determinantes para soar o alerta acerca dos riscos de faltar água para consumo humano em múltiplas áreas urbanas num futuro próximo.
Desde 2012, repetidas secas que assolaram o Brasil forçaram o consumo muito maior dos estoques de água dos mananciais. Os mananciais superficiais estão visivelmente menores. Basta observar o nível dos rios e das represas para constatar. A captação de água em reservatórios próximos às regiões metropolitanas, por exemplo, chegou ao nível de atingir o que é tecnicamente chamado de “volume morto”, isto é, reservas que não podem ser captadas pelas tomadas de água usuais dos reservatórios, tão baixos estavam os níveis d’água.
Não obstante os estoques de água subterrâneos serem muito mais resilientes aos eventos climáticos extremos, o equilíbrio dinâmico do fluxo de entrada e saída de água precisa ser capaz de manter um estoque mínimo de água, sob risco de que os estoques sejam exauridos e o fluxo afetado de forma irreversível. Não é o que vem ocorrendo.
A soma de (i) épocas das chuvas com fortes tempestades, que causam aumento da velocidade de escoamento superficial e diminuem a infiltração da água no solo e de (ii) longos períodos secos, que diminuem radicalmente os níveis dos mananciais superficiais e resultam no aumento do “escoamento de base”[ix], isto é, a deságua de água subterrânea para os corpos d’água superficiais, é uma preocupação, pois evidentemente, como o fluxo de saída é maior do que o de entrada, o estoque diminui.
A redução da capacidade de recarga somada à maior transferência de água para os mananciais superficiais impediu que lençóis freáticos voltassem aos seus níveis históricos em várias regiões do país, o que fez desaparecer fontes e olhos d’água em quantidades nunca imaginadas.
Seguimos focados no exemplo do município, mas lembramos que os esforços e as responsabilidades pela busca da autossuficiência hídrica podem – e devem – se estender a entes públicos regionais, como comitês de bacias, consórcios intermunicipais, concessionárias e, inclusive, grandes consumidores privados, como unidades industriais e agropecuárias.
Cidades costumam se desenvolver a partir de uma fonte de água próxima. O crescimento populacional cria maior demanda por água, a captação de água bruta original deixa de ser suficiente naquela área e é preciso encontrar novas fontes de água. Esse é o caso óbvio de grandes metrópoles, mas que também ocorre em municípios menores. Conflitos internos e com municípios vizinhos, perda de crescimento econômico e piora das condições de saúde são algumas das decorrências óbvias da restrição hídrica.
Cursos d’água, como rios e córregos, comumente fornecem água para mais do que uma localidade e, muitas vezes, constituem a própria delimitação de propriedades e territórios. Os mananciais subterrâneos seguem uma lógica territorial diferente. Suas estruturas e extensão não são visíveis e o usual[x] é que o acesso às suas águas seja associado ao detentor do domínio sobre os imóveis[xi] embaixo dos quais estão localizados.
Continuamos com os municípios. Para evitar essas restrições, o ideal é garantir que o município produza toda água demandada em seu território. Certamente isso não será possível em todos os 5.568 municípios brasileiros, pelos mais variados motivos. Só para citar alguns: condições naturais do território, sua extensão, necessidades de consumo de sua população e das atividades econômicas e a qualidade da água bruta. O fato é que os municípios precisam conhecer e zelar pelo manancial subterrâneo de seu território.
É vital localizar, conhecer, medir o potencial de produção de água e aproveitar suas capacidades de cada possível acesso aos mananciais subterrâneos de seu território. Os poderes dados aos municípios para cuidar do saneamento básico, do qual a captação é o elemento vestibular, são suficientes para tal.
É forçoso reconhecer que a infraestrutura que a própria natureza criou – e sabe cuidar da água melhor do que nós humanos, que a poluímos e a desperdiçamos – é a mais adequada em alguns casos.
Retornamos assim a dois conceitos fundamentais: (i) recuperação e conservação da estrutura físico-hídrica das bacias hidrográficas do município com o uso de infraestrutura verde e (ii) descentralização da produção de água com o aproveitamento de todas as fontes de água naturais de forma sustentável.
A autossuficiência hídrica será o resultado da mudança de paradigmas, da recuperação da capacidade de recarga das bacias e sub-bacias do município e do aumento das unidades de coleta de água bruta, de menor dimensão e espalhadas por todo seu território. Recuperam-se mecanismos de fluxo de água, recompõem-se os estoques e obtêm-se o equilíbrio dinâmico próprio do ciclo hídrico, o qual levou milhões de anos para ser formado pela natureza e que certamente os humanos não souberam aproveitar. Ainda dá tempo.
Texto elaborado por Eduardo Azevedo de Arruda Sampaio,
consultor da Synergia Socioambiental.
[1] Logicamente, outros entes públicos e o setor privado podem e devem usar a nova abordagem, mas essas alternativas serão abordadas com maior detalhe em outra oportunidade.
[i] Conforme Calheiros (2020), “Produção de água é a capacidade de uma unidade de área em captar, infiltrar e percolar a maior quantidade da água de precipitação possível e liberá-la (por meio das nascentes ou no fluxo de base), em sua maior parte, resultando em uma vazão, em toda a extensão do corpo d’água receptor, mais uniforme e em maior período de tempo possível”. Este conceito não implica negar que a água é um recurso natural finito e que criar mais água (no sentido de originar, fabricar, gerar, produzir) do que o planeta já tem, não está ao alcance dos humanos ou outros seres terrestres.
[ii] Art., 3o, Inciso I, letra a) da Lei Federal 11.445 de 5 de janeiro de 2007, com redação dada pela Lei 14.026 de 2020).
[iii] O Distrito Federal, conforme o 8o, inciso I da Lei do Saneamento.
[iv] Art. 9o da Lei do Saneamento.
[v] Manancial é qualquer corpo de água doce, superficial ou subterrâneo, utilizado para abastecimento humano, industrial, animal ou irrigação.
[vi] As demais fases obrigam o uso da infraestrutura cinza e equipamentos para viabilizar o abastecimento urbano e a qualidade da água bruta é essencial para seu dimensionamento.
[vii] Atlas Águas: Segurança Hídrica do Abastecimento Urbano. ANA Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, 202.1
[viii] Movimento descendente da água abaixo da superfície.
[ix] O “escoamento de base” que é a deságua nos rios e lagoas (oceanos também), tornando-os perenes.
[x] Usual não significa legal. O acesso à água é regulado pela União, estados e municípios de forma detalhada.
[xi] A água é um elemento da natureza e está inserida na categoria dos direitos difusos; pertence à coletividade e transcende a classificação de direito público ou privado. A expressão domínio aplica-se à água para significar seu gerenciamento, não sua propriedade, a qual não pode ser de pessoa física ou jurídica, seja esta de natureza pública ou particular.
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