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As enchentes no Rio Grande do Sul e os impactos sanitários que emergem das águas

Publicado em: 02/07/2024

Muito se fala sobre as enchentes no Rio Grande do Sul, mas, afinal, o que são enchentes? Segundo o dicionário da língua portuguesa Houaiss, o substantivo “enchente” significa: grande abundância ou fluidez no volume de águas, devido ao excesso de chuvas, subida de maré; cheia, inundação.

A frequência com que as enchentes ocorrem, diferentemente de um fenômeno puramente natural, está fortemente relacionada a fatores antrópicos, dos quais podemos destacar: retificação e canalização de rios e córregos, ocupação de áreas de recarga e de planícies de inundação, impermeabilização e compactação do solo, obstrução de canais de drenagem, desmatamento, degradação da mata ciliar e implementação de estradas rurais desintegradas de práticas conservacionistas de solo e água.

Também se engana quem associe a construção irregular de edificações em áreas sensíveis, como reservas naturais, próximas a corpos d’água, encostas e topos de morro, apenas à população de baixa renda.

Moradias e condomínios de alto padrão também são comumente encontrados em localidades de mesmas características. O que difere é a exposição e a vulnerabilidade ao impacto para cada situação, segundo o poder aquisitivo de cada pessoa ou núcleo familiar.

No caso de risco de enchente, algumas moradias em bairros nobres serão mais resistentes e as pessoas ocupantes terão mais recursos para se deslocar para locais seguros do que a parcela da população marginalizada cercada por infraestrutura e equipamentos públicos precários.

Garis fazem a limpeza de uma rua coberta por lama
A separação dos resíduos é crucial para impedir que materiais contaminados sejam destinados erroneamente aos aterros sanitários – Foto: Getty Images

Podemos visualizar com maior clareza o agravamento das injustiças climáticas no atual cenário de cheia que acomete o estado do Rio Grande do Sul. Entre maio e abril de 2024, as enchentes no Rio Grande do Sul atingiram mais de 90% do estado, cobrindo uma área superior a 240 km² – equivalente a todo território do Reino Unido embaixo d’água. Sendo os segmentos mais vulneráveis da população, as comunidades indígenas, ribeirinhas e pequenas comunidades agrícolas, os maiores impactados.

A rápida urbanização é um dos fatores responsáveis pela distribuição desigual das pessoas e das infraestruturas pelo estado. Forçadamente, os segmentos mais pobres se instalaram em locais considerados inadequados, com grande risco de enchentes e deslizamento de terras, e possuem casas construídas de materiais pouco resistentes a esses riscos.

Enchentes no Rio Grande do Sul: o desafio do saneamento básico

Além da infraestrutura, o saneamento é um problema antigo. Em 2015, a Região Metropolitana de Porto Alegre, por exemplo, tinha 24% das residências com esgoto a céu aberto. Dados de 2022 informam que, dos 497 munícipios do estado, somente 131 possuíam ligações ativas de esgoto.

Outro agravante é o abastecimento de água nas regiões afetadas. A CORSAN (Companhia Riograndense de Saneamento) informou que durante o pico das cheias, em 04 de maio, 906 mil pontos estavam sem água em todo o Rio Grande do Sul.

A recuperação dos sistemas severamente atingidos em 67 cidades foi alcançada apenas três semanas depois. Retomar o abastecimento de água potável é fundamental, mas esbarra no esgotamento. Estando o nível de água nos canais urbanos próximo ao de extravasamento, novas vazões não são suportadas pelo sistema e aumentam a possibilidade de retorno do esgoto para dentro das casas pelos ralos e bueiros.

No período em que a população esteve sem acesso ao saneamento básico e exposta a todas as condições inerentes à catástrofe, a saúde pública foi severamente afetada. O Centro Estadual de Vigilância em Saúde (Cevs) elaborou um Guia Básico para Riscos e Cuidados com a Saúde após Enchentes.

No guia, é possível encontrar os riscos associados ao consumo e a contaminação proveniente das águas das enchentes, a propagação de vetores associados com a disseminação de doenças infecciosas e de veiculação hídrica, tais como: leptospirose, hepatite A, tétano, amebíase, febre tifoide, doenças diarreicas agudas e doenças infecciosas respiratórias.

Com destaque para a leptospirose, que ao longo do mês de maio totalizou 2.327 casos notificados, 141 casos confirmados e 7 mortos – trata-se de uma doença transmitida pelo contato com a urina de animais infectados, principalmente ratos, os quais são vistos com frequência nas áreas afetadas devido ao acúmulo de lixo.

Além das doenças, a população fica mais exposta aos riscos de afogamentos, choque elétrico, acidentes com animais peçonhentos, lesões físicas, como ferimentos e fraturas, durante a travessia por locais de baixa visibilidade, queda de árvores ou no manuseio dos escombros; sem esquecer do aumento de casos de violência física, sexual e psicológica, principalmente, contra mulheres e crianças.

Estima-se que 47 milhões de toneladas de entulho foram geradas pelas enchentes no Rio Grande do Sul – Foto: Diego Vara / Reuters

Outro fator preocupante é o grande volume de resíduos sólidos gerados. Conforme a água da enchente baixou, os resíduos foram se acumulando em calçadas e ruas e as dúvidas começaram as surgir: como destinar os resíduos? O que ainda é possível recuperar?

O consultor em resíduos pós-catástrofe do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), Martin Bjerregaard, afirma que separação e reciclagem de materiais, principalmente os oriundos da construção civil  – madeira e concreto  – são a solução ideal para evitar a sobrecarga dos aterros.

Tais resíduos, se corretamente gerenciados, podem ser triturados e utilizados como matéria-prima nas obras de reconstrução, ao invés de exigir da própria natureza essa mesma quantidade de recursos.

Estima-se que 47 milhões de toneladas de entulho foram geradas pelas enchentes no Rio Grande do Sul, as quais podem impactar significativamente o meio ambiente e levar anos para serem gerenciados. A limpeza poderia ser otimizada caso houvesse um plano de aproveitamento dos materiais, contando com o apoio de outros estados e da federação. Contudo, considerando a quantidade de caminhões de coleta existentes nos municípios, a previsão para limpeza pode ser de até trinta anos.

A separação dos resíduos é crucial para impedir que materiais contaminados sejam destinados erroneamente aos aterros sanitários, inclusive pelo grau de complexidade e periculosidade que alguns apresentam, tanto do aspecto ambiental quanto da saúde pública. Um exemplo são os mais de 200 mil automóveis danificados, cujas peças e componentes podem conter metais pesados e contaminar as águas e o solo com chumbo ou com derivados de petróleo, como combustíveis e óleos.

E tratando-se da logística dos resíduos coletados, também é importante entender em quais condições se encontram as estradas e as unidades de triagem, transbordo e os próprios aterros durante a enchente.

Em 21 de maio, o estado gaúcho chegou a ter 77 bloqueios totais e parciais em 46 rodovias, considerando-se estradas, pontes e balsas; dificultando o deslocamento de trabalhadores/as, a realização dos serviços públicos de coleta, mesmo em áreas não alagadas, e a destinação dos resíduos coletados.

Em Porto Alegre, 7 das 17 unidades de triagem foram alagadas e sofreram danos estruturais, o que sobrecarregou as unidades em operação e as pessoas que ali trabalhavam. Cerca de 2,5 mil catadores/as, principais agentes de limpeza do Rio Grande do Sul, foram severamente impactados pelo desastre. Muitos/as dos/as quais, tem na reciclagem o seu meio de subsistência e residem em regiões vulneráveis.

O papel das políticas públicas e participação da sociedade civil

Nessa atmosfera, em que todo o sistema de saneamento esteve prestes a colapsar, a solidariedade foi o fator crucial para que a catástrofe não alcançasse proporções ainda maiores. Vidas foram salvas e diferentes recursos estão sendo alocados para a reconstrução de cidades inteiras. Porém, episódios de extremos climáticos estão mais recorrentes e mais intensos. A própria capital Porto Alegre já enfrentou grandes enchentes nos anos de 1873, 1928, 1936, 1941, 1967 e, recentemente, em 2023.

A existência de planos municipais para a mitigação e adaptação às mudanças climáticas de nada valem se permanecerem na teoria e desarticulados de outros instrumentos de planejamento ambiental, como o zoneamento econômico-ecológico e os planos de bacia hidrográfica e de saneamento básico, por exemplo.

Cabe a nós fiscalizarmos os próximos passos, refletirmos sobre a importância do atendimento ao regramento ambiental, da integração de agendas públicas, exigirmos o monitoramento e a manutenção dos sistemas de contenção das enchentes, e cobrarmos os responsáveis pela transparência dessas informações.

Texto elaborado por Bianca Gomes, coordenadora de sustentabilidade da Synergia e mestra em saneamento e meio ambiente, e Lara Tetzner, analista de sustentabilidade da Synergia e especialista em meio ambiente e sustentabilidade.

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